quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Passagens de nível by Alberto Gonçalves

De acordo com a polémica do momento, e com a reacção socialista à polémica, parece ser ponto assente que o TGV é a linha (ferroviária) que separa a prosperidade colectiva da catástrofe certa. Se não houver TGV e ligação com Espanha, estaremos pelos vistos condenados a uma miséria que nem a Serra Leoa reconhecerá. Por mim, disponho-me a acreditar no dantesco cenário, e a aceitar que se espatife o dinheiro que não temos numa tarefa tão razoável quanto a nossa salvação. Só me resta perceber porquê, o que, nestas matérias, até é o menos relevante. Em primeiro lugar, há a questão dos "fundos" europeus, que talvez nos escapem se o TGV não avançar. Não percebo em que medida 389 milhões compensam os 8,3 mil milhões (fora derrapagens) que o projecto total custa. Em segundo lugar, há a questão de perdermos, metafórica e literalmente, o comboio da Europa. Não percebo de que Europa se fala: o TGV (e variantes) é exclusivo de meia dúzia de países, além de que Portugal, graças ao Pendular, já é um dos sete ou oito no continente (e 10 ou 11 no mundo) que possui alguma coisa aparentada à "alta velocidade". Em terceiro lugar, há a questão da utilidade. Não percebo a quantidade de aerofóbicos necessária para se preferir o TGV aos custos baixos e à rapidez das companhias aéreas low-cost. Em quarto e último lugar, há a questão dos autarcas fronteiriços que exigem o TGV em nome do desenvolvimento regional. Esta questão eu percebo. Claro que, apesar da fama, os autarcas não são boçais a ponto de imaginarem que o TGV pára em todos os apeadeiros como o comboio a carvão. Nem supõem que os passageiros à janela de uma carruagem a 300 km por hora garantam, por telepatia ou milagre, o progresso. A explicação encontra-se nas declarações que, há um par de anos, um presidente de junta prestou ao Correio da Manhã, todo satisfeito por lhe terem plantado um data de aerogeradores na freguesia. Dizia o senhor que as ventoinhas, "muito lindas", atraíam gente para piqueniques em seu redor. Eis, portanto, o que move os autarcas da província: multidões de turistas a merendar na contemplação do TGV. A tecnologia é assim sedutora, e eu próprio não resisto a estender uma toalha e a puxar do farnel sempre que deparo com um painel solar. Depois aparece a polícia e manda-me ir à minha vida. Entre nós, a resistência à modernidade ainda é imensa.

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